Sobre as coisas não absolutas da vida
MARCELO - Cá estou eu. Feliz e sozinho nesse quarto vazio de hotel. Não que isso não me agrade de certa forma, mas é tudo tão paradoxal. Sempre que eu estava em meu quarto, na casa da tia Aurora, estava tenso, a espera do próximo problema, do próximo encontro, das indagações dela. Esta calmaria é também melancólica, distante da euforia do dia-a-dia, degustando o que essa viagem me traz de bom. De bom. Eu, aqui e ela lá aguardando meu retorno.
RUBRICA - Arrasta-se ainda medianamente animado para a mesa do restaurante, prepara-se para uma refeição completamente só, em um ambiente privado, só ele, a comida e as cadeiras vazias, a cabeça fermentando coisas. Já sentado, comendo, lhe vem a imagem da tia sentada à mesa, como se ela estivesse ali mesmo, ele pode vê-la, sente o peso da sua presença, o desconforto, [como é a indiferença dela? como ela mastiga, o que ela diz? ela faz uma voz de choro forçado sempre que fala da irmã morta há tantos anos e da culpa junto com a responsabilidade de ter que cuidar de mim,]
Ele passa a comer mais rápido, como quando ela principia a falar da irmã, da mãe, da vizinha, sempre como anúncio do que virá depois.
MARCELO - Sempre aquele assunto do qual tanto fujo, fujo de mim e, portanto, fugia dela e de tudo.
RUBRICA - Cuidado e preconceito numa dança quase que histérica.
MARCELO - Tal qual aquela tarde em que ela entrou em meu quarto e me avistou pela primeira vez com sinais de um querer cuidar que simplesmente não cabia aos meninos.
TIA - O que você esta fazendo ai embaixo, menino?MARCELO - Nada não tia!TIA - Como nada? Então por que está se escondendo?
Vamos...me dê isso. Senão você já sabe o que vai te acontecer!!RUBRICA - Atônito entrega uma boneca de pano para a tia.
TIA - Então era isso!? Eu já não te disse que eu não quero te ver brincando com boneca? De quem é essa boneca, menino?MENINO - É da filha da D. Judite...(E eu gostava tanto daquela boneca.)MULHER - Eu não acredito que você pegou a boneca da filha da empregada pra brincar!!MENINO - Mas ela deixou..
RUBRICA – Como quem diz isso acreditando ser esse um problema ético(o fato de ter pego algo que não lhe pertencia)
MARCELO - Ela sempre me empresta, eu não peguei sem ela saber e minha mãe nunca brigou...
RUBRICA – A tia, numa histeria silenciosa.MULHER – Sua mãe está morta, Marcelo.
RUBRICA – Numa mescla de raiva e compaixão pelo menino. Como quem de fato acredita que a questão é que simplesmente tem brinquedos de meninos e outros, de meninas. Simplesmente, não tinha registro.
TIA – Marcelo, olha só. Pegue aqui esse carrinho. Esse sim é brinquedo de menino.
MARCELO – Mas por que?
TIA – Porque é Marcelo, porque é.
RUBRICA – De volta à realidade do restaurante do hotel, ele engole porções ainda maiores como quem quer deglutir tal história, ela emenda a costumeira segunda parte sobre os sobrinhos da vizinha, os outros netos da mãe, o namorado de fulana, ele não tem pressa nos gestos, mas a comida desce o mais rápido possível, ela fala de cada um destes moços, de como são bonzinhos, bem sucedidos, exemplares, de como saem com belas garotas .Ele costuma pensar que sua deglutição é uma dança para aqueles acordes que estouram da garganta da velha, ela capricha no timbre quando o interlocutor é alguém importante (qualquer um que não seja a vizinha ou a mãe, ou a empregada), e sempre que o timbre melhora o sobrinho espera pela patada, pelo desprezo, por qualquer coisa pior do que a rotina já bastante ruim, e é sob um agudo crescente daquela voz estridente que ele vai se paralisando à mesa, perguntando-se:
MARCELO: Como "ela pode estar aqui, agora"?
RUBRICA - Derrotado ele observa a comida desmoronar lentamente de cima do garfo estacionado à altura do queixo, como areia que escorre na ampulheta, cada garfada de arroz desgraçadamente branco, vai paralisando o tempo, o tempo de tudo, tempo da vida, da alegria, do sonho, do projeto...paralisando...só não paralisa o medo, o medo paralisante. Marcelo, paralisado, revisita uma das situações vivenciadas na adolescência.
MARCELO - Tia, tô saindo, mas volto pro jantar.TIA- Vai aonde?MARCELO - Encontrar uns amigos.TIA - Sei... E o Jonas é um deles?! Esse garoto vive grudado em você.Já te disse que não gosto dele e não suporto essa amizade de vocês.MARCELO - Ele é meu...
TIA- (interrompendo) O que é isso na sua orelha?
MARCELO - Isso o quê? TIA - (espantanda) UM BRINCO!!!MARCELO- Tia...TIA- Quem te deixou furar a orelha? Quantas vezes eu vou ter que repetir que isso não é coisa de homem? MARCELO - Isso não tem nada a ver, tia.TIA - Você tem que se portar como HOMEM!MARCELO - Para com isso, tia. Eu não gosto quando você começa com esse discurso.TIA - Pois eu vou continuar até você tirar esse brinco, esquecer aquela... aquela sua amizade com o Marcelo e se interessar por uma garota. Ouviu bem?
MARCELO – E eu... também não entendendo aquilo, não via a hora de encontrar Jonas. Eu simplesmente não me interessava por nenhuma das meninas. Sim, era amigo delas, muito amigos, mas o Jonas, não sei..tinha alguma coisa que...
RUBRICA – De volta a si, toca o celular.
MARCELO – Alô?Sim, é Marcelo sim.O que?A tia Aurora?Quando?RUBRICA - Despenca a comida toda no prato, despenca o garfo, despenca o prato no colo, despenca mesa, cadeira, despenca ele próprio, despencam ódios e apegos. Despenca aquela vontade de entender o que aquela mescla de ódio pela não aceitação de se ser simplesmente como se é e o apego por aquela mulher que foi a única que dele cuidou de verdade.
Mas isso, não importa mais.
Educação Ambiental
Há 3 anos